Quando uma tragédia como esta surge nas manchetes dos jornais e/ou televisão, sentimos sede de explicações rápidas — um rótulo diagnóstico, um culpado, um motivo fácil. A verdade é mais intrincada: a mente humana é uma paisagem de memórias, medos, escolhas e contextos sociais. Como profissionais, a nossa responsabilidade é não reduzir o sofrimento de alguém com POC a um slogan, nem permitir que o estigma de uma síndrome tão avassaladora e floresça. Devemos juntar cuidado clínico, avaliação forense rigorosa e políticas públicas que protejam — e, acima de tudo, lembrar que o amor‑próprio, a contenção e a escuta são antídotos que começam muito antes de um gesto irreversível.
1. “Como podemos caraterizar um transtorno obsessivo-compulsivo.”
R: Antes de mais, gostaria de deixar um pequeno esclarecimento, faço-o com todo o respeito pelo trabalho dos jornalistas e em nome da clareza para os leitores. A designação mais correta, segundo a terminologia clínica recomendada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, é Perturbação Obsessiva-Compulsiva (POC), e não “transtorno”, que é uma tradução brasileira. Embora pareça apenas uma questão de semântica, a linguagem tem peso, e usar os termos certos ajuda-nos a tratar estes temas com a seriedade e respeito que merecem.
A POC é uma condição marcada por pensamentos obsessivos, intrusivos e persistentes, geralmente indesejados, e por comportamentos ou rituais — chamados compulsões — que a pessoa sente necessidade de repetir para aliviar a ansiedade que esses pensamentos provocam. É importante sublinhar que, na maioria dos casos, estes pensamentos não correspondem a desejos reais da pessoa, o que gera um sofrimento muitas vezes silencioso, mas muito intenso.
2. É o mesmo do que perturbação obsessiva‑compulsiva?
R: Exatamente, mas usamos preferencialmente o termo Perturbação Obsessiva‑Compulsiva (POC) para dar maior precisão clínica e cultural, em vez de “transtorno obsessivo‑compulsivo”. Esta escolha de palavras ajuda‑nos a ver a condição clínica com respeito e clareza.
3. Qual é o grau de prevalência em Portugal? É possível saber?
R: Em Portugal não temos actualmente dados muito detalhados apenas para a POC, mas em estudos internacionais a prevalência vitalícia ronda cerca de 2 % a 4,1 % da população em geral. Pensamos que no nosso país os números devem ser aproximados, o que sugere que várias dezenas de milhares de pessoas em Portugal poderão viver com POC, obviamente muitas sem diagnóstico.
4. Quais são os principais sinais a ter em conta?
R: Os sinais mais evidentes sãos os pensamentos ruminantes e repetidos, a maioria das vezes intrusivos e indesejados (obsessões) que naturalmente, provocam grande ansiedade, tensões e stress. E os comportamentos ou rituais que a pessoa sente que “tem de fazer” para aliviar essa ansiedade (as compulsões). Habitualmente, esses sintomas consomem muitas horas do dia. É um alerta se interferem com a vida social, tem impacto emocional no trabalho, na vida social e/ou nos relacionamentos, então devemos prestar atenção e recorrer a ajuda profissional.
5. É algo que só acontece em jovens ou também pode ser identificado em adultos?
R: Pode, com frequência esta síndrome acontece nos mais jovens. Mas é uma problemática que acontece em ambos casos, tanto a jovens como adultos. De facto, é comum algumas pessoas começam a manifestar sintomas na adolescência ou no início da idade adulta, mas o diagnóstico tardio em adultos não é invulgar (University of Groningen, 2022).
6. Como é feito o diagnóstico?
R: O diagnóstico é clínico e passa por uma avaliação profissional (psicólogo, psiquiatra) que faz uma avaliação clínica e verifica com instrumentos e inventários apropriados. Esta análise deve ser feita por profissionais capazes que verificam a presença de obsessões e/ou compulsões, se estas causam sofrimento significativo ou interferem na rotina, e se persistem no tempo. Também se avalia se há comorbidades ou outras condições associadas (Clinical Practice & Epidemiology in Mental Health, 2023).
7. Existem pessoas que podem viver com esta doença sem saber que a têm?
R: Absolutamente. É comum pessoas sofrerem em silêncio, achando que “sou assim mesmo”, que “isto faz parte de mim”, sem perceberem que há tratamento e apoio. Isso impede a pessoa de obter ajuda que poderia transformar muito da sua vida.
8. Quais são os riscos de não ser correctamente identificado e tratado?
R: É realmente importante ficar atento aos sinais, se a POC não for identificada e acompanhada, o sofrimento psicológico pode ser avassalador. Ou seja, se vives como “manias”, “pensamentos que te assustam” ou “rituais repetitivos” podem evoluir para níveis de ansiedade extremos, aumentar o isolamento, deteriorar a qualidade de vida, provocar stress crónico, depressão ou outro sofrimento. Ignorar os sinais é permitir que uma parte do eu da pessoa se desgaste até ao limite.
9. No caso deste jovem, é possível um transtorno deste género levar uma pessoa a matar? Será ou não arriscado fazer essa associação de causa/efeito?
R: Convenhamos, é muito arriscado fazer uma associação direta de causa/efeito. É fácil apontar o dedo e dizer: “ele fez isto porque tinha POC”. A verdade é que a POC por si só raramente leva a actos violentos sem que existam outros factores graves (impulsividade, abuso de substâncias, acesso a armas, psicose, ambiente familiar adverso). É necessária cautela no discurso público para evitar culpabilizar pessoas com POC e aumentar o estigma desta síndrome.
10. Pode um transtorno obsessivo‑compulsivo desencadear outro tipo de consequências que possam levar a um tipo de ação mais agressiva deste género, como foi o caso deste jovem?
R: Em casos complexos, sim. Se a POC estiver associada a outras pertrubações, a frustração intensa, a sensação de deserção, violações de fronteiras pessoais e disponibilidade de meios de violência, então existe um risco aumentado de outros comportamentos problemáticos. Mas, reitero, isso não é o comportamento “normal” ou “inevitável” para quem tem de lidar com a POC.
11. Um transtorno obsessivo‑compulsivo pode levar uma pessoa a esquecer‑se de actos que cometeu?
R: Habitualmente não. A POC tipicamente não provoca amnésia dos actos (como pode acontecer em perturbações dissociativas ou psicóticas). No entanto, pode haver rituais tão automáticos que a pessoa depois os percebe como “não sei bem por que o fiz”. Mas isso não é equiparável a “esquecer que cometeu um crime”.
12. Como é que pode interferir com o dia a dia de uma pessoa, na convivência com outras pessoas e com colegas de trabalho?
R: Bom, deixo um exemplo tipico, quantos de nós chegamos atrasados a uma reunião porque “tenho de verificar isto mais uma vez”? Imaginemos agora fazer isso a toda a hora, a POC tem um grande impacto pessoal, emocional e social, interfere: na produtividade no trabalho, gera ansiedade de convívio, desgaste em família, isolamento, vergonha, culpa. Afeta a vida, a forma como a pessoa se relacionas, a forma como vive de forma avassaladora.
13. Como é que familiares e amigos podem ajudar alguém com um transtorno obsessivo‑compulsivo?
R: Ouvir sem julgamento, a escuta activa será a mais adequada. Evita reforçar rituais (“ok, só mais uma verificação”) mas mostrar-se presente e palavras de compreensão, do género: “vejo que estás a sofrer, vamos procurar ajuda juntos”. Incentivar apoio profissional, acompanhar, informa‑se — porque saber é parte da cura. Simples gestos de compreensão e evitar o julgamento fácil, mudam muita coisa.
14. Se uma pessoa for diagnosticada, é importante falar com as pessoas mais próximas e dizer que tem este problema?
R: Sim — abrir‑se é um acto de coragem e de amor‑próprio. Vejamos, quando confiamos aos outros “isto é o que está a acontecer comigo”, criamos rede de suporte. Pode ser difícil, pode haver vergonha, mas esconder-se impede a pessoa de ser visto/a, apoiado/a, compreendido/a.
15. É possível tratar um transtorno obsessivo‑compulsivo ou apenas ser medicado e viver com ele?
R: Felizmente, a Perturbação Obsessiva‑Compulsiva não é uma sentença perpétua — é possível tratá‑la com resultados muito encorajadores. Não se trata apenas de “aprender a viver com ela”, mas sim de a compreender, desmontar os seus mecanismos e recuperar o controlo sobre a tua vida. A abordagem mais recomendada é a Terapia Cognitivo‑Comportamental, especialmente na sua vertente mais profunda — a Terapia dos Esquemas de Young — que permite ir além do comportamento visível, tocando nas crenças disfuncionais e padrões emocionais que sustentam os rituais obsessivos. Um exemplo é o uso da Hipnoterapia, particularmente em contextos terapêuticos sérios e bem conduzidos, pode ajudar a aceder mais rapidamente ao inconsciente, reduzir a ansiedade com mais eficácia e identificar as possíveis origens emocionais dos pensamentos ruminantes e intrusivos — que estão muitas vezes na raiz das compulsões.
16. Como pode ser tratado?
R: Tratamento ideal = TCC adaptada à POC (exposição + prevenção de resposta) +, quando indicado, medicação (ISRS ou outros), se possível identificar as possíveis origens emocionais dos pensamentos ruminantes e intrusivos. E, finalmente, apoio psicossocial, ambiente familiar que compreenda. Quanto mais cedo se intervir, melhor.
17. Superar um transtorno obsessivo‑compulsivo é conseguido apenas com força de vontade?
R: Não creio. A força de vontade é útil, mas não suficiente. A POC não é “escolha” ou “teimosia”; é um padrão que exige intervenção, suporte e profissionalismo. A vontade de a pessoa se abrir aos tratamentos, ajuda‑a, mas confiar apenas na força interior sem apoio pode atrasar a recuperação.
18. É um mito dizer que todas as pessoas têm um transtorno obsessivo‑compulsivo?
R: Sim, é mito. Todos podemos ter “manias” ou “rituais” – são apenas traços de personalidade funcionais, mas ter sintomas ou hábitos não significa ter POC. O que distingue é o sofrimento, o tempo perdido, a interferência na vida, e isso exige diagnóstico.
19. Um transtorno obsessivo‑compulsivo é apenas ansiedade?
R: De todo. Se a ansiedade é uma dos factores presentes? Claro que é, talvez a mais evidente e parte central, mas a POC vai além: inclui rituais, pensamentos intrusivos específicos, interrupção da rotina. A ansiedade é o “motor”, mas há um padrão particular de pensar‑agir que o torna distinto.
20. Um transtorno obsessivo‑compulsivo é mais do que ser excessivamente limpo, organizado ou estar sempre a lavar as mãos?
R: Exatamente, essas expressões populares “sou obsessivo” ou “sou maníaca por limpeza” banalizam a POC. A POC pode envolver essas manifestações, sim, mas inclui medo profundo, rituais internos, desgaste emocional. Ser muito limpo ou organizado não significa automaticamente ter POC — e muitas pessoas com POC não são apenas “limpas demais”.
Dr. Alberto Lopes
(Neuropsicólogo e Hipnoterapeuta das Clinicas Dr. Alberto Lopes Aveiro|Porto|Lisboa)



